Se você acha que as pessoas em situação de rua não têm qualquer semelhança com as domiciliadas, esta matéria é um convite para você conhecer os serviços de acolhimento da Secretaria de Assistência Social (Semas) voltados para essa parcela da população. É só percorrer pelos corredores desses espaços para conhecer as potências mescladas à diversidade de histórias que os levaram a esta condição de vulnerabilidade social.
Entre elas estão a do professor de inglês, Júlio César Viana Pereira, de 53 anos, do técnico de informática, Eduardo de Campos Sperandio, 52, e Alan Borges Siqueira Cavalcante. Eles se encontraram na Hospedagem Noturna, localizada na Cidade Alta, depois de anos utilizando as ruas da cidade como dormitório.
Os três chegaram a esta condição após conflitos familiares decorrentes do uso de entorpecentes, e, hoje, juntos deixaram aflorar o amor pelos livros e o desejo de despertar a paixão pela literatura nos outros usuários daquele espaço.
Fluente na língua inglesa, Júlio já morou nos Estado Unidos e na Inglaterra. Desde julho de 2021 está em situação de rua e procurou acolhimento no Centro de Referência a Pessoa em Situação de Rua (Centro Pop), em Mário Cypreste. De lá pra cá, já esteve no Abrigo 1 e, hoje, passa as noites no espaço de hospedagem noturna, onde conheceu Eduardo e Alan.
Apaixonado por literatura, a amizade entre eles fluiu naturalmente e, entre uma conversa e outra, nasceu o projeto de criar um canto para leitura na Hospedagem Noturna. Ideia que foi prontamente apoiada pela equipe técnica do local. Hoje, são mais de 440 livros.
Mão na massa
“Um técnico mostrou caixas com vários livros, mas faltava gente para organizar. E nós abraçamos a oportunidade e ficamos responsáveis por catalogar os livros”, comentou Júlio. Eduardo Sperandio usou seu conhecimento na área de tecnologia para criar um programa para facilitar o acesso dos colegas às publicações. “Separamos por gênero, autor e número de páginas. E estamos organizando resumos dos livros para ajudar na escolha”, disse Eduardo, todo orgulhoso.
Eduardo revelou que em pouco mais de um ano já leu 78 livros e tem como meta fechar o ano de 2023 com o registro de 200 publicações lidas. Para ele, vale qualquer tipo de livro. “Eu acredito que os livros podem motivar outras pessoas a saírem dessa situação (vícios) e passarem a enxergar que a vida é muito boa. Aqui, esse momento é transitório. Eles precisam acreditar que conseguem conquistar um objetivo”, enfatiza ele.
Quando questionados quais eram os sonhos que, ainda, alimentam, Júlio foi o primeiro a responder: “Quero contribuir para a superação de outras pessoas. Voltar a estudar para fazer uma licenciatura e ter uma família – casar, ter uma mulher, filhos”. Já Eduardo disse querer voltar para o mercado de trabalho, ter emprego, renda e liberar a sua cama na hospedagem noturna para outra pessoa que precise.
“Estou fazendo curso de estofador de móveis no Senai e espero arrumar um emprego. Eu dormia nas arquibancadas do Sambão do Povo. Eu pedi ajuda e quero continuar a caminhada, alcançando minhas metas e propósitos”, comentou ele.
Ferramentas para janelas saudáveis
O amor pelos livros também está fazendo a diferença na vida de José Roberto, de 39 anos, que está no Abrigo 1, em Santa Lúcia. Em pouco mais de um ano, ele disse ter lido mais de sete livros. “Eu leio independente de dizerem que o livro é bom ou ruim. Gosto de ter minha própria opinião. Amo ler. Lendo crio meus próprios cenários e tiro o foco das coisas ruins. Os livros são ferramentas para janelas saudáveis. A gente começa a ver outras possibilidades. Eu já me matriculei na Educação de Jovens e Adultos (EJA), que é oferecido no próprio Abrigo 1, e já estou inscrito num curso de logística. Eu busco a inserção no mercado de trabalho e superar essa condição”, afirmou José Roberto.
Para a gerente de Proteção Social Especial de Alta Complexidade, Anacyrema Silva, a leitura reflexiva representa uma das boas vias para entender a realidade. “É verdade que em nossa sociedade as práticas leitoras são pouco incentivadas e desenvolvidas. Desta forma, dada a sua importância, a leitura deve ser estimulada e integrada ao cotidiano das pessoas em situação de rua, pois colabora para a desconstrução de estigmas solidificados e de fortalecimento de seu protagonismo para a vida social”, defende Anacyrema.
A secretária de Assistência Social em exercício, Carla Scardua, disse que é memorável utilizar o poder dos livros “de levar” a outros mundos possíveis, de entreter ao mesmo tempo em que favorece a reflexão sobre a realidade ou a fuga de dificuldade que os usuários enfrentam em seus cotidianos.
Saiba mais:
Abrigo 1
O espaço acolhe até 50 adultos na modalidade 24 horas e mantém oferta de alimentação, oficinas, higienização, turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), atendimento psicossocial, atividades de fortalecimento de vínculo familiar e comunitário, dentre outras.
Hospedagem Noturna
Acolhimento Institucional na modalidade pernoite com capacidade para até 40 pessoas, com atendimento psicossocial, atividades de grupo, alimentação e higienização, dentre outros.
Pessoas em situação de rua fazem da leitura caminho para mudança de vida